Wednesday, February 28, 2007

Cem anos de Solidão - Gabriel Garcia Marquez

"MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Co-ronel Aureliano
Buendía havia de recordar aquela tarde re-mota em que seu pai o levou para
conhecer o
gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas
à margem de um rio de águas diáfanas que se precipi-tavam por um leito
de pedras
polidas, brancas e enormes co-mo ovos prê-históricos. O mundo era tão recente
que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apon-tar com
o
dedo. Todos os anos, pelo m~s de março, uma fa-mília de ciganos esfarrapados
plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e
tambores,
dava
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a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o imã. Um cigano corpulento, de
barba rude e mãos de pardal,* que se apresentou com o nome de Melquíades, fez
uma
truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava
maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando
dois lingotes
metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as
te. nazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o
desespero dos
pregos e dos parafusos tentando se de-sencravar, e até os objetos perdidos há
muito tempo apare-ciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em
debandada
turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquía-des. “As coisas t~m vida
própria”, apregoava o cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a
sua alma.”
José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o
engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era
possível se
servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquía-des,
que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio
Buendía
não acreditava, naquele tempo, na honradez dos ciganos de modo que trocou o seu
jumento e um rebanho de cabritos pelos dois lingotes imanta-dos. Ursula Iguaráni
sua mulher, aue contava com aqueles ani-mais para aumentar o raquítico
Datrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Muito eu’ breve vamos ter ouro
de so-bra para assoalhar a casa”, respondeu o marido. Durante vá-rios meses empenhou-se em
demonstrar o acerto das suas con-jeturas. Explorou palmo a palmo a região,
inclusiveo fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o
conjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura
doséculo XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo
interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras."

O Velho e O mar - Hemingway

"Era um velho que pescava sozinho num esquife na
Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias
sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz
fora com ele.
Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz
disseram a este que o velho estava definitivamente e
declaradamente *salao*, o que é a pior forma de azar, e o
rapaz fora por ordem deles para outro barco que na primeira
semana logo apanhou três belos peixes. Fazia tristeza ao
rapaz ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e
sempre descia a ajudá-lo a trazer as linhas arrumadas ou o
croque e o arpão e a vela enrolada no mastro. A vela estava
remendada com quatro velhos sacos de farinha e, assim
ferrada, parecia o estandarte da perpétua derrota.
O velho era magro e seco, com profundas rugas na parte
de trás do pescoço. As manchas castanhas do benigno cancro da
pele que o sol provoca ao refletir-se no mar dos trópicos
viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara
abaixo, e as mãos dele tinham as cicatrizes profundamente
sulcadas, que o manejo das linhas com peixe graúdo dá. Mas
nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como
erosões num deserto sem peixes.
Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram
da cor do mar e alegres e não vencidos.
- Santiago - disse o rapaz, ao virem da praia para
onde fora alado o esquife. - Posso tornar a ir contigo. Já
ganhamos algum dinheiro.
O velho ensinara o rapaz a pescar e o rapaz gostava
muito dele.
- Não - respondeu o velho.- Andas num barco de sorte.
Fica com eles.
- Mas lembra-te de como saíste oitenta e sete dias sem
peixe, e depois apanhaste só grandes, todos os dias, três
semanas a fio.
- Lembro - disse o velho. - Bem sei que não me
deixaste por duvidares.
- Foi o papá quem me mandou. Sou um rapaz pequeno e
tenho de lhe obedecer.
- Bem sei - disse o velho. - É assim mesmo.
- Não têm grande fé...
- Pois não. Mas nós temos. Então não temos?
Temos - respondeu o rapaz.
- Posso pagar-te uma cerveja no Terraço e depois
levamos a tralha para casa?
- E porque não? - disse o velho."